Suportes digitais versus suportes artesanais

por
José Soudo - n. 1950
Fotógrafo. Curador. Investigador independente em História da Fotografia.
Mestre em Fotografia Aplicada.
Título de Especialista em Meios Audiovisuais e Produção dos media..
Jan 2022
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EsboÇo do princípio físico da camera obscura - Codex Atlanticus (1515)

O futuro já chegou e já nos entrou pelo quarto adentro.
O futuro já chegou e já nos entrou pelas câmaras fotográficas.
Os suportes com sais de prata foram substituídos pelos sensores digitais, e passaram a ser rotina no nosso quotidiano.
O futuro de há cerca de 40 anos, já é presente hoje, agora!

Já não podemos fazer como a avestruz e ignorar que estamos mesmo em período de adaptação e reconversão às novas tecnologias, aplicadas ao século XXI.
Os sistemas de suporte digital para fotografia ainda hão de fazer correr muita tinta de tinta, ou de cartucho de impressora, assim como hão-de provocar muita opinião contraditória e por vezes demagógica, até se concluir da sua qualidade verdadeira e efectiva.
Estamos, estaremos sempre, à procura dos melhores caminhos e da melhor qualidade, assim como das melhores e mais adequadas respostas destes novos processos, o que é natural e próprio do Homem.
No entanto, com toda a modéstia vos digo, que só poderemos entender o futuro da fotografia em suporte digital, se fizermos alguma reflexão sobre a evolução dos suportes fotográficos que os avós utilizaram no século XIX, ou provavelmente em períodos anteriores.
Tudo isto volta a relacionar-se com a hipótese especulada de Leonardo da Vinci ter utilizado uma emulsão “fotográfica” feita artesanalmente e da qual já vos dei conta no texto anterior. Apliquei-a e resultou.
No entanto, quero manter a reflexão num passado credível e reconhecido como tal, ou seja, nos primeiros anos de actividade fotográfica no século XIX.
Dos múltiplos processos artesanais elaborados pelos avós, poderíamos destacar alguns dos mais conhecidos, como a heliografia, a daguerreotipia, a calotipia, inicialmente ligados ao mistério e fascínio de nomes e de pessoas como Niépce, Daguerre, Bayard ou Florence e Talbot, entre muitos outros.
A propósito deste último, que está mais próximo de nós, pela aplicação de um tipo de registo que originava matrizes em negativo, posteriormente invertidas para positivo por contacto directo, vem-me à memória não ele, mas alguém, que com ele trabalhou nas primeiras investigações dos processos químicos da fotografia e que muito justamente poderíamos assumir como o Papa da Fotografia, na sua época:

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John Herschel (1792/1871)


Sir John Herschel, que nos deixou entre tantas coisas e processos, um conhecimento tão útil como o de estabilizarmos as imagens produzidas pela redução dos sais de prata em prata obscurecida, tendo ensinado Talbot a retirar do suporte, os sais de prata não transformados em prata, com uma solução aquosa de hipossulfito de sódio, vulgarmente conhecido como fixador e que ainda hoje utilizamos na química fotográfica.
Parecendo ter sido o inventor do fixador, como toda a galinha que nasce do ovo, mas o ovo tem que vir de uma galinha, saliente-se que o conhecimento das propriedades do hipossulfito de sódio, enquanto produto que dissolve sais de prata, são anteriores a Herschel, assim como as múltiplas experiências com amónia, feitas por Scheelle e documentadas no respectivo Chemische Abhandlung von der Luft und dem Feuer - " Tratado químico do ar e do Fogo”, cerca de 1777.

Sir John Herschel que logo nestes primeiros anos da fotografia enquanto actividade regular, e estamos a falar dos anos 1840’s, nos deixou também um processo alternativo à prata, produzido com materiais ferrosos, conhecido por Cianotipia e de resultados fascinantes e aparentemente vulgarizou na Europa de então, o termo fotografia, que andava escondido no Brasil e divulgado por Hercule Florence, cerca de 1833.
Anna Atkins (1799/1871), botânica e amiga de Herschel e de Talbot, aprendeu e executou com este processo, entre 1842 e 1843, as imagens do livro Photographs of British Algae - Cyanotype impressions dedicado às ciências botânicas.
Este livro constituído por fotogramas originais em cianotipia de algas da costa britânica, foi publicado em Outubro de 1843.

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Cyanotipe de Anna Atkins – c.1842


Se o desejarem, vamos experimentar o processo.
Com os cuidados devidos à utilização de produtos que são tóxicos, preparemos em separado:

A - 50 gramas de Ferricianeto de Potássio diluídos em 250 ml de água.
B - 90 gramas de Citrato Férrico de Amónio diluídos em 250 ml de água.
No momento de iniciarmos o processo, juntam-se em partes iguais, A e B (p. ex. 50 ml de A com 50 ml de B).
Não podemos ignorar que estamos a preparar uma emulsão sensível à luz, por isso teremos que trabalhar em local de obscuridade média.
Com um pincel espatulado espalhemos a emulsão sobre um bom papel de aguarela.
Quando o resultado estiver seco, coloca-se uma matriz em negativo sobre o papel sensibilizado, comprime-se bem com um vidro e leva-se à luz solar durante cerca de 30 a 45 minutos, como tempo de referência.
Como tudo em fotografia experimental, se os tempos não forem os adequados, incrementam-se em dobros, ou desincrementam-se em metades, até se obterem resultados que delimitem o tempo final, de modo a que os mesmos sejam considerados por nós, como satisfatórios.
Há que nunca esquecer que a História da Fotografia é a história dos pioneiros e experimentalistas determinados, que nunca desistiram perante os insucessos.
Se tudo correu bem, depois de se retirar a matriz, lava-se com água corrente e iremos com certeza deslumbrarmo-nos em tons de azul ou de ciano.
Disfrutemos!

José Soudo
janeiro de 2022
 


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